AS LINGUAGENS DA COMIDA
“Apareça em casa pra tomar um café!”
Quando nos propomos a um convite simples como este, estamos em verdade buscando compartilhar com quem amamos um dos prazeres mais profundos de nossa existência humana.
O convite inclui – invariavelmente – um bolo, um pão de queijo, um lanche , ou seja lá o que for. Muitas vezes pode iniciar num jantar. De qualquer forma, dividir uma refeição é um ato de entrega e bom convívio.
No reino animal isso também ocorre. Permitir que um outro ser se sacie de sua caça recente pode significar um aceno à harmonia. Generosidade. Conquanto ocorra com mais freqüência entre seres da mesma espécie, ainda assim podemos interpretar o nosso “comer junto” como uma forma de dizer: “eu me reconheço em você”.
Ainda que pareça óbvio, comer junto é uma forma de promover a manutenção de um conceito que jamais pode ser esquecido: pertencemos todos nós, em que pese qualquer característica específica, a uma única espécie: a humana.
Dentro deste espectro, compartilhar o verbo comer é uma declaração de paz entre os seres e, portanto, é capaz de nos estimular a uma série de sentidos e sentimentos que envolvem o ato.
AS FAMÍLIAS E SEUS HÁBITOS
Desde que nos propusemos, ao longo de nossa história, nos organizarmos em micro formações sociais, com o estabelecimento de nossas famílias, somado ‘a nossa diversidade cultural, esse compartilhamento do comer passou a ganhar nuances próprias, peculiares e em alguns casos até mesmo específica.
Exemplificando a partir apenas de nosso país, são evidentes as características únicas destes encontros nas famílias do sul, do norte, do nordeste, do sudeste e do centro-oeste. Variando entre o cuscuz, o churrasco, a tapioca, ou o famoso pão de queijo. Cada região oferecendo o melhor de sua cultura e culinária em favor do bem viver em conjunto.
Nesta divisão ainda é possível encontrar variações nascidas de nossa miscigenação tão presente. Lembranças remotas de nossos antepassados compõem com muito vigor nossos paladares, entregando cores, sabores e preparos muito específicos. Tudo a temperar de memória a construção de nossa história.
Reside neste fato a possibilidade de servirmos uma “macarronada” acompanhada de um “torresmo à pururuca”, por exemplo. É a comida a celebrar a diversidade cultural.
SIGNIFICADO EDUCACIONAL E CULTURAL
Também existe uma estreita relação entre a comida e a educação. E aqui não se trata unicamente nos bons modos à mesa.
Em tempos em que as crianças passam a maior parte do seu dia imersas nos ambientes escolares, a construção das relações entre elas e os alimentos, na formação da construção de suas independências, no estreitamento dos laços afetivos, no processo de desenvolvimento de suas sensações gustativas, visuais, táteis e olfativas e mais: na possibilidade de compartilhamento de sua “caça recente” com outros seres de sua espécie. Um modo de exercício ancestral a favorecer a harmonia e o respeito mútuo.
ENCONTRO E RELACIONAMENTO
Um clássico exemplo da importância e das inúmeras linguagens que a comida pode nos oferecer pode ser encontrado no próprio despertar do amor. É bastante comum que os apaixonados entreguem ao seu desejado um solene e esperançoso convite para jantar. E aos muitos deles que obtiveram sucesso, a certeza de que o momento jamais foi ou será esquecido.
Quantas conversas desenroladas aos sabores das comidas. Os mais variados temas acompanhados dos mais variados cardápios. Alimentar-se de convivência é ingrediente comum a qualquer prato.
Comer junto para conquistar, comer junto para manter a relação, comer junto para ajustar ponteiros, para selar amizades, para festejar e celebrar a vida. Tamanha é a importância de compartilhar este momento, que é possível marcar uma despedida, um desencontro, uma perda. Ainda que aparentemente seja menos aprazível, pode significar o fortalecimento para o recomeço.
CADERNO DE RECEITAS
Quem não tem em sua gaveta guardado um velho caderno de receitas? Alguns manuscritos por antepassados, outros impressos em papel A4. Folhas soltas e amassadas, amareladas, respingadas pelos ingredientes que ela mesma nos exige.
Os cadernos de receitas que nos acompanham a todos são registros de nossas vidas e de nossas comidas. Eles oferecem a possibilidade de resgate de nossas memórias afetivas, de nossa cultura tão plural, dos sabores enraizados em nossa infância, nossa juventude e nossos amores.
Folhear um caderno de receita nos remete a momentos marcantes de nossa história quando nos leva de volta ao que vivemos. E também ultrapassa a barreira da própria história quando nos possibilita produzir e provar os sabores que temperaram a história de nossos povos primitivos. Alimentar-se de história de outras vidas e agradar o paladar de nossas células carregadas do DNA de nossos familiares que residem na raiz de nossa árvore genealógica, e que possivelmente não estão mais entre nós. Alimentar-se do que somos.
É HORA DO RECREIO DA VIDA
Nestes tempos de festa, em que a comida nos trás tantos significados, é hora de refletirmos sobre as linguagens de nossa comida e de nosso comer.
Fazer com seja momento de saciar muito mais do que nossa fome eventual surgida da necessidade física de manutenção de nossos corpos. Compreender a importância de compartilhar as refeições em favor da saciedade de nossas necessidades de estar junto, de compartilhar nossos melhores temperos, nossas receitas, tradicionais ou exclusivas.
Tempo de revisitar o sabor de nossas construções remotas, de nossas conquistas de amor, das cores e sabores de estar com quem se ama. Reapertar nossos laços de afeto entregando à vida o que temos de mais saboroso.
É a hora do recreio da vida, onde assim como as crianças, vamos sorrir, brincar, conviver bem e comer nossos quitutes. Vamos nos sentar juntos para saborearmos o prato principal que é “estarmos vivos”, e salpicarmos sobre ele o ingrediente que nos diferencia e nos torna muito especiais: O AMOR!
Bom apetite!!!