Se um dia acontecesse o milagre de nascer de novo, ou se talvez me tornasse uma alma mais evoluída ou, quem sabe – até mais fácil – encontrasse uma lâmpada mágica na areia e pudesse escolher o dom, a arma com a qual lutar no mundo e pelo mundo, tenho já bem claro o que escolheria. Encheria o peito e diria rápido: Senhor, eu quero escrever como Rubem Braga! 

De tudo o que tenho lido na minha já bem vivida vida, entre tantos mestres da palavra, foi pelas crônicas de Rubem Braga que entendi como as histórias mais simples podem entrar pelos nossos olhos como um bálsamo, para alegrar ou entristecer, divertir ou emocionar, para fazer pensar e desejar a sabedoria, para aprender a amar as pessoas tais como são, em seus descaminhos.

As histórias de Braga parecem as conversas de um homem consigo mesmo ou à janela, com seus amigos ou com as mulheres que amou. Foi capaz de extrair um emocionante encanto das flores de maio, graça da história dos meninos e dos passarinhos, descreveu o lancinante desespero dos afogados e com a ironia de sempre a sua doença, ao fim da vida.

Suas crônicas me vieram à cabeça enquanto pensava sobre o que a educação pode fazer por um mundo sem guerras. É uma pergunta muito difícil. Guerras são feitas por gente com diploma, boas notas, universidade. É o conhecimento científico que produz ogivas nucleares. Pobre escola, se jogássemos sobre ela até a responsabilidade pela violência atroz, pela crueldade do mundo. 

Deixo a resposta a essa pergunta para os leitores, mas arrisco um palpite, pois é evidente que a educação continua a ser uma de nossas poucas esperanças. Penso que escolas devem ser, acima de tudo, lugares de compartilhar histórias sobre o humano. Pela ficção, pelo jornalismo, pela poesia, pelas crônicas, pela música, pelo grafite, pelo que for, precisamos contar histórias por meio das quais os novos humanos antevejam, sintam, vivam a felicidade e o sofrimento, e aprendam a construir e compartilhar sonhos comuns, fermentem as utopias. A escola é o espaço do que é humanamente comum a todos – para além da família, da rua, do bairro, da cidade, do país, das bolhas virtuais. Só podemos conhecer um palmo além de nosso próprio umbigo pela experiência e pelas linguagens.

Volto a Rubem Braga, que viajou muito e escreveu até o fim de sua vida, aos 77 anos, pois ele também esteve no front. Como correspondente do Diário Carioca, acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Durante esse período, também produziu crônicas, algumas das mais belas que alguém já deve ter escrito (para mim, pelo menos, ainda sob o impacto da primeira leitura, tantos anos depois). 

Adolescente, lendo essas crônicas, aprendi sobre a alma humana, as paixões, as belezas escondidas na dureza do cotidiano e também sobre o horror da guerra, pela doçura, pelo espanto e inconformismo de um escritor dono de um texto úmido de amor pela vida. E a Braga novamente peço ajuda para fazer chegar minha mensagem. Recorro a ele quando, aos 32 anos, em fevereiro de 1945, encontrou a menina italiana Silvana Martinelli, 10 anos, devastada pela explosão de uma bomba.  Chorei então como, claro, choro agora ao digitar.  Em uma página curta, que retalho em dois parágrafos, escreveu Braga: 

“Sim, tenho visto alguma coisa e há coisas que os homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres – sim, por mais distraído que seja um repórter, ele sempre, em alguma parte em que anda, vê alguma coisa. Muitas vezes não conta. Há 13 anos trabalho neste ramo – e muitas vezes não conto. Mas conto a história sem enredo dessa menina ferida. Não sei que fim levou e se morreu ou está viva, mas vejo seu fino corpo branco e seus olhos esverdeados e quietos. 

(…)

Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas ó hienas, ó porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, ó altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (ó negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) – por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.

Sim, querido escritor, é preciso acabar com isso para sempre, de uma vez por todas.

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