Antes de mais nada, vamos fazer uma pequena reflexão acerca de nossa própria vivência, de nossa existência e na evolução humana. A facilidade com que, hoje, somos capazes de produzir fogo, ou como se tornou tão simples e comum nosso conhecimento sobre como devemos regar nossas plantas. Isso parece óbvio, não é? Pois sim, realmente são tarefas que podemos cumprir, ainda que com auxílio de alguma ferramenta, a partir de um conhecimento que já está incorporado profundamente em nosso saber.

Mas como é que os conhecimentos mais primários de nossos ancestrais passaram a compor, hoje, nosso mais trivial repertório? Como temos isso gravado em nós de forma quase instintiva? Certamente alguém contou a alguém, que contou a outro alguém, e o somar de todos os contos enraizaram e se perpetuaram em nós.

Por outro lado, mas ao mesmo tempo, somos capazes de sentir muito prazer quando nos aquecemos ao redor de uma fogueira, ainda que não tenhamos participado do “acender” do fogo. Existe em nós uma satisfação, também enraizada, ligada diretamente ao “sentir”. E não se trata apenas da sensação corpórea que o calor do fogo nos apresenta, mas com o “sentimento” afetivo que se produziu no ser humano, no compartilhar uma fogueira. E onde está o manual de instruções desta relação? Nos mesmos contos de histórias que atravessaram gerações para, tanto tempo depois, nos produzir conhecimento, sensações e sentimentos pelo fogo. Uma riqueza que não se pode mensurar.

Somos enriquecidos pelas histórias contadas desde sempre.

Elas nos alimentam de sabedoria e sedimenta nossas relações. Quem não se recorda com saudade das histórias contadas por nossas mães, pais ou avós? Quantas vezes reconhecemos um objeto jamais visto, porque ele já compôs em algum momento, uma história que nos foi entregue?

Me recordo especialmente do “ferro de passar” que conheci deitado no colo de D. Antônia. Um modelo bastante antigo, movido a “brasa”. Esse ferro fez parte das histórias de sua própria vida, que me fizeram dormir por um sem número de vezes. Ele foi construído inicialmente na minha imaginação, com os formatos, cores e texturas que meu pensamento foi capaz de produzir. Um dia, numa visita a uma pequena loja de antiguidades, eu me deparei com um deles. Assim que meus olhos o encontraram, ele foi imediatamente reconhecido por mim. Era diferente do que eu projetara, mas estava estabelecido entre nós dois uma relação de conhecimento e sentimento: vínculo. Pude imaginar a mão tão carinhosa de minha avó a empunhar seu cabo de madeira bruta a receber as centelhas de brasa a lhe queimar os pulsos.

É disso que estamos tratando.

Contar histórias às nossas crianças é estabelecer com elas uma relação com nossa vida e com nosso conhecimento.

É transmitir para elas o bastão de nosso futuro e sedimentar a ponte entre o ontem, o hoje e o amanhã. Ela estabelece a “presença”. O desejo de conhecer o desenlace do enredo.

Não importa se as histórias a serem contadas são aquelas da nossa própria vivência, se são as histórias de outras pessoas ou se são inventadas. Porque, ainda assim, existe um encontro muito fértil com todas as vivências, de todas as pessoas. Mesmo as ficções nos alimentam, porque fazem borbulhar o nosso encontro com o imaginário. Elas são capazes de entregar ao nosso sonho a possibilidade de construir seus objetos ao seu próprio modo, para quem sabe depois, reconhecê-los.

Junto ao conhecimento, junto à possibilidade de estímulo à imaginação, contar histórias para as crianças estreita os laços afetivos. Com a contação de histórias gravamos neles a nossa voz, nosso cheiro, nosso ritmo, nossa temperatura e, acima de tudo, nossa presença. A sensação tão agradável e lúdica da soma de todos os fatores que envolvem este momento é catalisadora de bons sentimentos: de cumplicidade, de afeto, de escuta, de vínculo, de entrega e de amor.

A dimensão estabelecida entre o tempo, o corpo e o espaço é de inteireza e abre nas crianças a possibilidade de relacionar -se com a grandeza que o mundo carrega ao ouvir a voz daquele que confia envolta em tantas narrativas.

Como nos lembra Severino Antônio, em sua recente obra: O voo dos que ensinam e aprendem: uma escuta poética”:

“…Quanto a nós precisamos ser acolhidos e acalentados por esses braços e essas vozes que nos ritmam o corpo, as batidas do coração, as percepções assim como o sono, os sonhos e os sons que iniciam a nossa voz.” 

Diante disso, a resposta nos parece muito clara, porque produz importância significativa também no adulto, a partir do fato de que tais sentimentos são estradas de mão dupla.

Contar histórias é impregnar-se de lembranças para impregnar de imaginação a criança, e fazer pulsar de vida as relações entre elas. 

E você professor, que história nos contaria?