Sempre tive comigo que a maior riqueza de um jornalista é o privilégio de ser recebido por pessoas sabidas, que parariam o que estivessem fazendo para atender um pobre ignorante e lhe explicar em palavras simples suas pesquisas, seus livros, seus achados, seus melhores pensamentos. Usei e abusei desse privilégio, e não posso dizer que já parei. Continuo colocando meu chapéu de repórter toda vez que quero aprender mais, direto da fonte.
Foi assim que conheci muita gente boa – de coração, de cabeça, de ação. Encontrei, por exemplo, Cipriano Luckesi, pessoa doce e sábia, capaz de falar amorosamente verdades brutas. Qualquer professor que tenha prestado um concurso público leu Luckesi, pois ele foi e é uma das grandes referências brasileiras no tema da avaliação. E quanto mais o tempo passa, quanto mais vejo novas ideias, propostas, políticas, projetos, mais entendo quanto o ato de avaliar pode ser a grande bola de ferro amarrada no pé do educador, ou as asas com as quais ele decola.
Pois foi conversando com Luckesi, há 20 anos, que o ouvi dizer algo tão óbvio, que desmontou tudo o que eu pensava do assunto então. Se um aluno tira 2 na primeira prova, e consegue 10 na última, quanto ele sabe? Bom, vejam que a pergunta não é qual é a média, mas o quanto ele conhece sobre o que foi perguntado. A resposta deveria ser: tudo. Mas porque lhe carimbam um 6 nas costas – nota inferior à média, em muitas escolas de alto desempenho? E o que significa aquele 0.25 que leva alunos ao temido Conselho de Classe, na Sociedade do Conhecimento?
Fotógrafo Robert Doisneau
Evidentemente, provocações como estas não esgotam o assunto, mas povoaram de pulgas minhas orelhas sobre um dos mais importantes temas da educação. Há aí uma infinidade de abordagens, e alguns grandes divisores. Ao rés do chão, se quisermos agir como Moisés, e dividir o mar, ou como Salomão, e dividir a criança, falaremos que as avaliações podem ser somativas – e dá-lhe prova, teste, exame, medidas – ou formativas, e nessa seara entram todas as abordagens em que avaliar é um jeito de aprender, como a autoavaliação, os trabalhos, os processos, seminários, produções, portfólios, etc.
Há lugar e hora para tudo, para o exame e para a avaliação, mas deixemos neste momento o tema para os universitários. Uma busca no google, youtube, linkedin, trará discussões de gente infinitamente mais gabaritada para colocar a questão – procure por José Francisco Soares, o próprio Luckesi, César Nunes, Charles Hadji, há uma seleção de craques no assunto.
Meu assunto aqui é o substrato dessa conversa. Precisamos reconhecer que nós, educadores brasileiros, herdamos uma das culturas avaliativas mais cruéis, que brande a cínica navalha da nota para controlar a classe, punir os distraídos, premiar os que se enquadram, condecorar os sobreviventes, de forma tão entranhada que mal percebemos o ruído da engrenagem.
Para quem costuma criticar a lanterninha do Brasil nos exames do Pisa, é bom saber que o país ocupa posições ainda mais tristes. Está entre os primeiros do mundo em porcentagem de alunos que reprovam, abandonam, evadem. Está profundamente instalado, no inconsciente de nossas escolas, um monstro chamado Pedagogia da Repetência – expressão cunhada por outro gigante da história educacional brasileira, o físico Sérgio Costa Ribeiro. É uma escola que não inclui, que expulsa.
É esse encosto que nos convence que professor bom é o que mais reprova, que escola que funciona é a que seleciona, que escola boa era aquela antiga, que deixava entrar apenas a elite e permitia sair apenas a elite das elites. Aí realmente só sai fera. Mais ou menos como os craques que sobrevivem no futebol. Aplaudimos os fora de série e esquecemos os milhões, extremamente talentosos, que se perderam nas várzeas, nas praias, nos morros, entre a fome e a bola.
Assim me disse Luckesi, então: “(…) A avaliação exige uma postura democrática do sistema de ensino e do professor, ou seja, para proceder a melhoria do ensino-aprendizagem, não basta avaliar somente o desempenho do aluno, mas toda a atuação do sistema. A aprendizagem melhorará se o sistema melhorar. (…). A responsabilidade por desempenhos inadequados não depende só do aluno nem só do professor, porém minimamente da escola e, abrangentemente, do sistema de ensino, como um todo”.
A cada 100 alunos que entram na escola brasileira, 69 vão chegar ao Ensino Médio até os 19 anos (ou seja, dois anos após a idade esperada). Ao final deste ano de 2022, pelo menos 1 milhão de alunos do Ensino Fundamental – Anos Finais e outro tanto no Ensino Médio vão ser reprovados. Esses “milhões” são pessoas, com sonhos, alegrias, desejos, dores, contextos, futuros, como cada um de nós.
Pois, afinal de contas, estamos falando de gente, não de números. E avaliar é um ato que acontece entre pessoas, mediadas por números, letras e cores, mas também por olhares, expressões faciais, gestos, ombros. Avaliar é um ato da mais extrema responsabilidade, pois coloca setas na jornada da vida — para cima, para frente, para os lados, para um buraco que parece não ter fundo.
Fechemos os livros por um momento; guardemos o diário de classe ou, para sermos mais modernos, desliguemos o sistema onde lançamos notas. Há crianças em casa agora, cujo último pensamento antes de dormir será a nota de amanhã, e elas pensam como farão para contar aos pais ou olhar os amigos, se sentindo burras e incapazes. São crianças como fomos, adolescentes como fomos, com frio na barriga, medo, tomando decisões de vida tão sérias como desistir ou continuar. Isso não é um drama mexicano. Entrevistei nas últimas semanas pessoas em todos os Estados para um livro sobre a educação na pandemia. Uma das medidas mais importantes tomadas pelo Conselho Nacional de Educação foi consolidar os anos de 2020 e 2021 como o chamado contínuo curricular, eliminando a reprovação. Sabem por quê? É que já em meados de 2020, muitos alunos começavam a desistir da escola pelo medo de reprovar. Não passava pelas suas cabeças que não tinham culpa de nada, muito menos de não ter acesso à internet ou a um notebook para as aulas remotas. Na verdade, boa parte não tinha sequer uma mesa para escrever. Não lhes passava pela cabeça que alguém iria considerar suas dificuldades, suas perdas, a necessidade de trabalhar para recompor a renda familiar. Achavam apenas que o ano iria chegar ao fim e tudo estaria acabado, simples assim.
Ora, mas porque alguém pensaria desse jeito? Bem, porque esta é nossa escola. Temos tantas exigências a fazer, tantas críticas sobre as novas gerações, mas o que oferecemos são escolas insossas, com salas lotadas, sem recursos, banheiros sujos, entorno perigoso, professores exaustos e mal remunerados, que se dividem entre vários empregos. Há até quem negue absorventes para as meninas, que por isso faltam às aulas. A prova ao final do bimestre? Ah, essa estará lá, infalível, inquirindo sobre tudo o que se há de saber para viver no Olimpo.
Não devemos avaliar então? Ninguém pensaria em semelhante loucura. Avaliar é essencial. Mas, é preciso humanizar a avaliação, como temos de humanizar a escola. Volto aos mestres. Invoco um peso-pesado, Célestin Freinet, pedagogo e anarquista francês, falecido em 1966.
Freinet escreveu um livro com um nome sábio – Pedagogia do Bom Senso – e, no capítulo chamado Sejam humanos, quis nos avisar: “Vocês reagem com a sua natureza de homens, e suas possibilidades e conhecimentos de adultos, como se as crianças que lhes foram confiadas fossem também adultas, com iguais possibilidades. Ponha-se no lugar dessa criança que você acaba de humilhar com uma nota baixa ou uma má classificação. Lembre-se do seu próprio orgulho quando você era dos primeiros, e de todos os maus sentimentos que o agitavam quando outros passavam na frente… Então você compreenderá e a classificação será suprimida. Se você não voltar a ser como uma criança, não entrará no reino encantado da Pedagogia”.
O primeiro ano pós pandemia traz uma oportunidade de ouro para humanizarmos as relações escolares. Falamos tanto hoje de saúde mental! Que seja também uma oportunidade de reequilibrarmos nosso olhar sobre os alunos, e reavaliarmos o que pensamos sobre avaliar, e talvez tenhamos dado um passo realmente transformador em direção a um futuro mais justo e inclusivo, em que a escola não seja uma outra forma de juízo final.