Nossa Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente já garantem e reconhecem as crianças como sujeitos históricos e de direitos, mas será que estamos cumprindo esse papel? De que forma podemos incluí-las em uma aprendizagem mais participativa? Quais são as experiências inspiradoras pelo mundo? É fundamental que os educadores busquem entender as novas formas de olhar para a aprendizagem e que sejam cada vez mais conectadas com os desafios contemporâneos. Na Educação Infantil, esse olhar é respaldado pela chamada “Abordagens Participativas”, tema do livro do mês do Clube do Livro Diálogos Embalados. A ideia é mostrar que as crianças devem participar ativamente do processo educacional e construir, junto com os adultos, conhecimentos de forma compartilhada, com experiências e múltiplas linguagens.

O livro “Abordagens Participativas na Educação Infantil”, organizado por Bruna Ribeiro, Doutora em Educação pela USP, pedagoga e especialista em educação infantil, é uma continuidade do “Pedagogia das Miudezas”, também lançado por ela, e traz diferentes experiências pelo mundo, que tem em comum a participação, o diálogo e, principalmente, o protagonismo infantil. “Elas fazem sentido para nós, educadores brasileiros, uma vez que não são apresentadas como modelos a serem reproduzidos e transpostos, mas como abordagens que ousaram desafiar os discursos dominantes sobre as infâncias e, assim, construíram novas possibilidades pedagógicas”, afirma Ribeiro. Sobre o livro, ela diz que os leitores vão encontrar, pela primeira vez, reunidas em uma única obra, conhecimentos sobre estas experiências pedagógicas por um viés pouco explorado. “Tudo isso mesclando os princípios que ancoram essas abordagens e exemplos práticos de como crianças e adultos vivenciam o cotidiano de forma real, não idealizada”. Confira entrevista que a autora concedeu à Diálogos.

Vivemos em um mundo onde a competição e o individualismo permeiam as relações sociais, inclusive em muitas escolas. De que forma as Abordagens Participativas podem ser uma ferramenta de mudança?

As abordagens participativas vêm justamente para nos lembrar que, como disse Jessé Souza, “tudo que foi feito por gente, pode ser refeito por gente”, ou seja, a educação é fruto de um processo histórico e, por isso, não pode ser vista como algo imutável, mas em permanente processo de reconstrução. É preciso que ela se atualize. O mundo mudou, as crianças mudaram, a forma de acesso à informação viveu transformações nas últimas décadas, o que impacta diretamente nas subjetividades e na construção de identidade dos sujeitos. Não faz sentido continuarmos presos ao mesmo modelo educacional, que já se mostrou exaurido, que expulsa as crianças da escola e não produz aprendizagens significativas. É urgente se abrir para outras possibilidades educacionais, mais alinhadas a uma perspectiva de mundo democrática, justa, antirracista, não sexista, onde os direitos dos bebês e crianças pequenas sejam respeitados.

Como os educadores podem dialogar e orientar as famílias sobre a necessidade de se criar este ambiente de cooperação?

As abordagens participativas, no geral, entendem que só podemos propiciar a participação dos bebês e crianças se nós, adultos, também recuperarmos nosso lugar de fala e participação. Só conseguimos garantir esse ambiente entre as crianças se também o construirmos entre nós. Trata-se da famosa homologia dos processos ou isomorfismo, a busca pela coerência dos princípios que norteiam o processo de ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, mais do que orientar as famílias, é interessante propiciar a participação no cotidiano pedagógico, a “tomar parte” nas tomadas de decisões e não apenas “fazendo parte”, recebendo informações e orientações sobre o que fazer. Por que não as escutá-las também?  Talvez desenvolver a cooperação entre os adultos, entre escola e família seja um caminho que pode gerar reverberações positivas também com as crianças, pois afinal, aprendemos com o que vivenciamos e não apenas com o que nos falam. 

Um dos temas de interesse dos educadores que acompanham a Diálogos é a gestão de conflitos em sala de aula. De que forma as Abordagens Participativas podem contribuir nesse assunto?

As abordagens participativas reconhecem o direito dos bebês e crianças pequenas ao conflito. Pode parecer estranho falar de “direito aos conflitos”, mas é que eles não são vistos como algo negativo, mas necessários ao processo de desenvolvimento saudável dos sujeitos. Nesse sentido, a criança é encorajada a dar vazão às suas emoções, cabe ao adulto não reprimir, mas escutar, mediar, orientar e encorajar a resolução por meio do diálogo e de forma negociada. Em outras situações, basta dar tempo às crianças, dar espaço para que elas mesmas encontrem suas soluções. Isso tem que ser entendido como um processo de construção diária, é preciso criar um ambiente favorável ao diálogo e à escuta.

Os adultos também criam expectativas em relação aos conflitos das crianças?

Sim, outro fator importante é ajustarmos nossas expectativas. Nesse ponto, o conhecimento sobre quem são esses sujeitos e como se desenvolvem é fundamental. Muitas vezes, o que pode estar em “conflito” não são as atitudes dos bebês e crianças, mas nossa própria expectativa. Querer que um bebê de apenas um ano saiba dividir seu brinquedo, achando que é “birra” ou que ele precisa “aprender a dividir desde cedo”, mostra o quanto ainda precisamos entender melhor quem são esses sujeitos, já que, neste caso, ele ainda está desenvolvendo o conceito de posse, só depois disso é que pode aprender a compartilhar. Precisamos ser cautelosos quando nos referimos a conflitos nessa idade. Se almejamos adultos saudáveis, que saibam regular suas emoções, o caminho passa por deixar que as crianças expressem livremente suas emoções.

É certo que as Abordagens Participativas buscam trazer a criança como sujeito ativo do próprio aprendizado. Como fica o papel dos professores nesse processo?

O adulto é fundamental nas abordagens participativas, todos eles. As abordagens recuperam a ideia de que é preciso “toda uma aldeia para educar uma criança”. É preciso que haja uma visão e concepção de criança e infância partilhada por todos os sujeitos implicados direta ou indiretamente no processo educativo: professores, coordenadores, diretores, cozinheiras, pessoal da limpeza, supervisores, secretaria de educação, famílias. Há que se construir, de forma compartilhada, o projeto educacional. Todos devem compreender a importância de cada gesto, cada materialidade, cada mobiliário presente nas escolas infantis. Quando as pessoas são chamadas para o processo de construção, elas se apropriam do percurso e se tornam grandes aliadas e parceiras.

O que os leitores podem esperar do livro: “Abordagens participativas na educação infantil”?

Vão encontrar, pela primeira vez, reunidas em uma única obra, conhecimentos sobre diferentes experiências pedagógicas participativas, por um viés pouco explorado – e até inédito – no Brasil. A obra mescla os princípios que ancoram essas abordagens e também exemplos práticos de vivências de forma real e não idealizada. Os capítulos trazem, ainda, diálogos com grandes referências internacionais, além das fotos e ilustrações em aquarela que confirmam a importância da estética na constituição dos sujeitos. Desejo ainda que os leitores possam encontrar uma injeção de ânimo. Conheço profissionais que atuam na construção de uma pedagogia mais democrática e participativa e muitas já me relataram o quanto se sentem solitárias. Enquanto organizava este livro, me lembrava da fala e dos rostos de muitas delas. Meu desejo é que elas possam se lembrar que não estão sós.

Educar crianças, nessa perspectiva, é um ato revolucionário?

Desejo que a leitura possa contribuir para lembrar da grandeza revolucionária do ato de educar bebês e crianças pequenas em ambientes educacionais coletivos. Este é um trabalho que impacta vidas, que impacta a atual e as futuras gerações. Impacta o mundo que estamos permanentemente reconstruindo. As experiências relatadas e descritas no livro são tidas como grandes referências de qualidade na educação das infâncias, recebem pessoas do mundo todo. No entanto, é importante lembrar que nem sempre foi assim. Tudo começou por meio do trabalho de pequenos grupos que, juntos, sonhavam com uma educação e um mundo mais respeitoso para todos os seres. É isso que desejo para esse livro, que ele possa nos inspirar a continuar sonhando e trabalhando por esse mundo novo.