Luciana Alves, professora da rede pública de São Paulo, nos convida a pensar a criança no centro do processo educativo. A criança como curadora do próprio percurso artístico.

O que é ser um curador ?  Como delegar esse papel as crianças ?

A tradução do verbo curar carrega dentro de si “o cuidar”. Cuidar para que as pessoas possam apreciar as propostas expostas, cuidar para que o outro sinta-se parte da obra, cuidar para pertencer.

Professora Luciana, com comprometimento e sensibilidade, nos brinda com um projeto tão bonito !

De nossa parte, aplausos.

P.S – O projeto foi escolhido para participar da eleição do prêmio Professor nota 10/2018, promovido pela fundação Victor Civita.

Como surgiu a ideia

O trabalho sobre “Crianças organizando Mostras Culturais” foi desenvolvido no ano de 2017, com uma turma do Infantil II (crianças entre 4 e 5 anos), com 35 crianças em uma Emei (Escola Municipal de Educação Infantil) da cidade de São Paulo.

Muito me inquietava a forma como algumas instituições de ensino que estudei ou atuei como professora organizavam suas Mostras: 

– Atividades realizadas apenas para este fim,
– Pouca participação das crianças no processo de elaboração dos projetos e, 
– Organização dos espaços, além do grande desperdício de materiais durante o evento.

Com o objetivo de contribuir com as reflexões acerca dos fazeres infantis, autoria e
protagonismo das crianças, busquei referências que subsidiassem uma proposta diferente, porém, não foi possível encontrar autores que tratam especificamente da temática, uma vez que se prioriza a exposição constante dos trabalhos dos bebês, crianças e adolescente. Agora, se mesmo sabendo disso as instituições de ensino optam pela realização das Mostras Culturais justificadas como um momento privilegiado de encontro, trocas e prestígio entre escola, família/responsáveis e crianças, como garantir que a criação, escolha e organização reflitam ainda mais as marcas da infância?

A intenção não foi ignorar um fazer em privilégio do outro, ao contrário, a escola em que a proposta foi investigada pode refletir e exibir ainda mais as manifestações das crianças no decorrer do ano, mas foi possível observar que o momento destinado a Mostra Cultural foi enriquecido e que podemos contribuir para a sensibilização de outras instituições de ensino que também realizam esses encontros.

Quando conversei com a minha turma sobre as apresentações de projetos, exposições de
trabalhos e Mostras Culturais percebi que não conheciam esta prática e que a única experiência com Mostras ocorreram enquanto estavam no Cei (Centro de Educação Infantil) e no ano anterior que estavam no Infantil I. As crianças, em sua maioria, nunca haviam visitado museus ou exposições e foi necessário levar essa sensibilização ao grupo como forma de pertencimento. 

Partindo do princípio que as crianças são as artistas do evento, são elas que deveriam escolher as obras apresentadas e como organizar o espaço, pensando na curadoria de suas exposições. Na maioria das vezes, são os professores que fazem as seleções do que será apresentado a partir do seu olhar adultocêntrico. A investigação demonstrou uma possibilidade de escuta participativa e de trazer meninas e meninos na organização dos fazeres para o evento mencionado.

Assim, no decorrer do ano, foi possível observar a sensibilidade das crianças e o amadurecimento do grupo para a proposta. A cada roda de conversa, cada obra selecionada, as resoluções dos problemas, os espaços escolhidos e formas de organização, enfim, a cada reflexão e ação conseguíamos perceber que os pequenos são
muito mais potentes do que imaginamos.

Outro ponto positivo foi à diminuição dos materiais utilizados e em organizações que privilegiaram recursos cotidianos e reutilizáveis. 

Um pouco sobre a prática

Quando assumi a turma, já conhecia um pouco a sua dinâmica, pois no ano anterior
realizávamos muitas propostas em parceria. Logo percebi que o corpo e os movimentos ainda eram a linguagem evidente do grupo. Sempre preferiam os espaços amplos para poderem correr, gritar, pular e jogar futebol (a brincadeira favorita de várias crianças e a que se organizavam com autonomia).

Propostas em sala precisavam ser pensadas e logo concordamos que o trabalho com cantinhos e a oportunidade de mudarmos a sala, tirando ou colocando mesas e cadeiras quando necessário seria o caminho para o desenvolvimento integral das crianças.

Pedi que as famílias/responsáveis contassem às crianças sobre suas infâncias e brincadeiras favoritas e que depois escrevessem ou desenhassem para que pudéssemos compartilhar com o grupo. Assim, passamos a brincar a partir dos relatos: 

– Corda (apenas duas crianças sabiam pular corda)
– Passa anel
– Barra manteiga
– Pé de lata, entre outras.

Conforme as semanas foram passando e o grupo se acostumando às novas rotinas e
professoras, começamos a conversar sobre preferências, registrar propostas de atividades e ideias de brincadeiras que interessavam a turma. É claro que como educadora não pude deixar esse processo ocorrer de forma apenas espontânea. Organizei espaços de apreciação de outros projetos, imagens, livros, vídeos, músicas, entre outras ações que foram importantes para o desenvolvimento.

Durante a nossa rotina, tínhamos um momento de roda com todo o grupo para organização das propostas do dia. Depois, arrumávamos os espaços em pequenos grupos para que as crianças pudessem desenvolver diferentes linguagens e eu passava pelos grupos instigando e propondo desafios para que ocorressem as aprendizagens. Avisava o grupo sobre a troca de atividades (se essa fosse a proposta) ou quando o tempo estava acabando para que todos pudessem se organizar e organizar os espaços e terminávamos com uma conversa sobre as atividades.

Fui percebendo que quanto mais deixava que eles se colocassem, mais rico se tornavam os espaços e as propostas. Começamos a conversar em maneiras de expor as nossas atividades e montamos um painel na sala e um na parede do lado externo da sala, para que outras crianças e também os adultos pudessem apreciar nossos fazeres.

Com o tempo, passamos a levar as produções para outros ambientes da unidade educacional, inclusive no espaço de alimentação, secretaria e entrada o que foi gerando
maior discussão entre os educadores da unidade e pertencimento dos pequenos que se sentiam representados no ambiente escolar.

Como as crianças, em sua maioria, não conheciam museus ou espaços de exposições,
conversei com a direção da escola sobre levarmos as turmas a uma visita, mas como não foi possível, falei com os familiares/responsáveis sobre o nosso projeto e pedi que, se possível, levassem as crianças a espaços culturais. Passei endereços de locais gratuitos e incentivei o pertencimento ao território.

Na escola, organizei momentos para que a turma pudesse ver fotos, vídeos e realizar tours
por museus interativos para que tivesse uma ideia dos espaços e da criatividade das exposições. Nas rodas de conversa abordamos que neste ano quem decidiria sobre a Mostra Cultural seria o grupo.

Falamos sobre temas e ficou evidente que a preferência era dividir com os participantes as
experiências com as brincadeiras que estávamos aprendendo e criando. Conforme produzíamos listas, textos coletivos, gráficos, desenhos, tabelas com a pontuação dos jogos, entre outros registros, a turma foi se tornando cada vez mais protagonista do processo enquanto eu aprendia e escutá-los e mediar às aprendizagens, sem ser o centro de escolha e tomada das decisões.

Depois da delimitação do tema, o segundo passo foi escolher um espaço para a exposição de nossos trabalhos e que preferencialmente fosse um ambiente externo (não em sala de aula) e coberto, para que pudéssemos organizar com calma, sem tanta interferência da professora.

Assim, passamos para outra discussão: como colocar todos os desenhos, descobertas e
registros? Percebemos que não seria possível contemplar os 35 trabalhos de tudo o que realizamos.

Geralmente, os educadores acabam selecionando as obras que consideram “mais significativas” ou em alguns momentos colocam tudo de todos, mas dentro da ideia do protagonismo e de uma exposição organizada pelos verdadeiros artistas, passei a responsabilidade para o grupo. No início não foi fácil e as crianças faziam várias perguntas:

– “Por que só algumas atividades vão para Mostra?” (criança 1);
– “Eu queria que o meu desenho fosse colocado lá!” (criança 2);
– “Ninguém vai ver o meu barquinho?” (criança 3).

Para que os pequenos sentissem que os seus fazeres eram importantes, eles precisavam ser mostrados de alguma forma, mas como a decisão não era minha, perguntei ao grupo
“O que podemos fazer com os registros que não forem para a Mostra Cultural?”

Decidimos que deixaríamos expostos dentro e fora da sala de aula para a apreciação de todos o que ali circulavam assim como utilizaríamos na composição do portfólio. Resolvido esse ponto, passamos a escolher efetivamente as propostas e em um primeiro momento, as crianças traziam falas:

– “Vou escolher esse desenho que é da minha amiga” (criança 4), ou
– “Esse desenho é muito feio, esse aqui é melhor pois é mais bonito” (criança 3).

Mais uma vez, precisei mediar tais relações e a teoria sobre artes visuais na educação infantil contribuiu para enriquecer a minha fala e o meu olhar. As rodas de conversas e
assembleias foram importantes para a partilha da turma e mais uma vez pude perceber o quão potente as crianças são frente a novos desafios. Logo as falas foram mudando:

– “Todas as atividades são bonitas, pois cada um tem o seu jeito, né?” (criança 2);
– “Eu não tinha entendido o desenho do (criança 5), mas eu perguntei para ele o que era e vi que era muito legal” (criança 6);
– “O (criança 7) não gosta de pintar de lápis de cor, ele só usa lápis de lição e eu achei bonito e comecei a fazer assim também” (criança 8);
– “A (criança 9) não gosta de desenhar. Ela gosta de cortar os papéis e colar nas folhas e aí faz o desenho dela” (criança 10).

Enquanto escolhíamos as obras, precisávamos pensar em como e em quais suportes
colocaríamos as propostas. Lembramos as Mostras Culturais vivenciadas e para ampliar o repertório, observamos as fotos dos museus anteriormente citadas e outras que considerei significativas ao objetivo. Assim, pintamos caixas de papelão de tamanhos diferentes e empilhamos para colarmos as fotos das crianças, falas, listas e letras de músicas para pular corda, lista de brincadeiras favoritas e desenhos referentes ao tema.

Ficava encantada com as discussões que eram geradas sobre o “como colar”, “se era melhor em pé ou deitado”, “se dobrado não ficava mais legal” enfim, em observar a
sensibilidade de construção e organização daqueles pequenos artistas. As discussões não eram tranquilas em que todos concordavam com a colocação do outro e isso era o mais interessante, pois no final todos acabavam se acertando e respeitando o que o colega dizia. Claro que intervi e mediei quando necessário, mas sempre que possível apenas observava e registrava esses momentos, pois o objetivo era que eles aprendessem essa ferramenta de argumentação, escuta e tomada de decisões que são tão presentes em uma sociedade reflexiva.

Colhemos gravetos no parque e enrolamos com barbantes e lã para colocar as fotos.
Aproveitamos as grades das janelas do nosso espaço de exposição e confeccionamos uma teia com barbante. Enquanto eu trançava, as crianças foram pintando e enfeitando pregadores, pois a ideia era pendurar as obras para que depois pudéssemos trocar sem estragar os materiais. Aproveitamos os barbantes para fazer varais com o mesmo objetivo.

Penduramos um tecido para colocar nossas dobraduras e utilizamos alfinetes para não estragar e para que pudéssemos utilizar o material posteriormente. Colamos nas portas nossos gráficos, colamos no chão o circuito de pés e enfeitamos caixas de papelão colando desenhos para colocar os brinquedos confeccionados.

Para finalizar, encontramos uma arara de roupas na escola que não estava sendo utilizada e resolvemos aproveitá-las. Faríamos varais para colocar as atividades presas com pregadores, mas o grupo resolveu que a ideia da teia nas janelas era melhor e começaram a trançar.

As crianças separaram as obras para pendurar e as conversas eram extremamente interessantes, pois elas colocavam os desenhos, mesclavam com fotos, paravam, olhavam, mudavam as produções de lugar com grande criticidade. 

Houve muitos desentendimentos, mas ao final o espaço ganhou vida.

Não foi um processo fácil, pois como comentei no início do relato, tinha uma turma com 35
crianças. Contei com a parceria das professoras e ATEs (assistentes técnicos escolar) para que em alguns momentos pudesse ficar com algumas crianças enquanto eu acompanhava outras.

A Mostra Cultural foi linda e os familiares/responsáveis e toda comunidade aproveitaram o
momento de encontro e partilha. Ao final do projeto, posso dizer que conseguimos deixar as marcas da construção da cultura infantil e respeitar o protagonismo e a autoria de meninos e meninas em um momento que muitas vezes suas vozes não são escutadas. Eles são os verdadeiros artistas e podemos contribuir para que as Mostras Culturais sejam momentos privilegiados de participação e aprendizagens.

Inspirações

Como o trabalho foi uma prática de observação, li muitos textos e documentos da prefeitura para embasar todo o processo e encontrei no livro “Interações: Onde Está a Arte na Infância?” de Stela Barbieri, uma inspiração, pois ela dizia sobre a importância de expor continuamente os fazeres das crianças, mas que os eventos organizados pelas instituições educacionais contribuí para a integração e troca entre famílias, crianças, professores e toda comunidade. Foi muito especial encontrar a autora em uma formação na Diálogos e contar sobre as minhas investigações. Os cursos também auxiliaram na sensibilização do meu olhar. Fiz sobre documentação pedagógica, oficina de
fotografia com André Carrieri, natureza como elemento da arte, gestos do brincar, com Renata Meirelles, entre outros e muitos foram realizados na Diálogos.

Sempre pude contar com a parceira e atenção dessa equipe que se tornou especial em minha vida!

Parabéns Professora Luciana, você está entre os 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10.                                        

Crianças organizando mostras culturais. Educação infantil / Crianças Pequenas. São Paulo, SP

Dar voz às crianças, deixá-las ocupar o espaço da escola e permitir que desenvolvam a noção de pertencimento, além de incentivar a autonomia delas e a tomada de decisões considerando a opinião de todos.

Não é fácil nem comum sair do lugar do professor que ensina e se propõe a ter o papel de de parceiro e mediador. Com isso tudo em mente, Luciana convidou as crianças de 4 e 5 anos a participar da mostra cultural da escola de forma protagonista.

Na prática, isso significou permitir aos pequenos ter a responsabilidade de preparar o espaço e selecionar o material. Portando-se como ótima ouvinte, a professora encaminhou os alunos a fazerem boas reflexões também durante a produção do que seria exposto.