Ana Teresa Gavião, doutora em Psicologia e Educação, Diretora de Formação da Fundação Antonio-Antonieta Cintra Gordinho, membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e do Network da Reggio Children, dedica mais de 15 anos à pesquisa e formação de professores brasileiros para difundir a abordagem de Reggio Emilia. Em entrevista à Diálogos, Ana Teresa discutiu os principais pilares da abordagem, sua relevância no contexto brasileiro e os desafios enfrentados. Confira a entrevista completa!

Vamos começar falando sobre a influência da abordagem Reggio Emilia no Brasil: fatores que a introduziram, sua relação com as práticas educacionais locais, como tem sido recebida e difundida ao longo do tempo, e a influência e inspiração no contexto brasileiro.

Sobre a influência da abordagem de Reggio Emilia no Brasil, é notável que, há muitos anos, desde o final dos anos 90 até o início dos anos 2000, diversas pessoas e algumas instituições educacionais têm se dedicado ao estudo dessa abordagem e buscado implementar ações mais intimistas, delicadas e suaves, inspiradas na filosofia de Reggio Emilia. É importante ressaltar que a abordagem de Reggio Emilia tem suas raízes profundas no contexto específico da cidade italiana de Reggio Emilia. No entanto, seus valores transcendem fronteiras. Destacam-se a valorização da potencialidade da criança e a garantia de seus direitos a uma educação de qualidade, bem como o respeito ao papel do professor como pesquisador, instigando a curiosidade e a atitude investigativa nas crianças. Além disso, a concepção do espaço como um provocador de aprendizagem e a prática da documentação pedagógica são fundamentais. A formação contínua dos professores também é um aspecto crucial.

Embora a abordagem de Reggio Emilia seja intrinsecamente ligada a seu contexto original, ela inspira valores essenciais para uma educação de qualidade. Um aspecto fascinante dessa abordagem, denominada Reggio Emilia Approach, é sua ênfase na reflexão sobre o próprio contexto educacional. Essa filosofia nos desafia a examinar nossa realidade educacional mais de perto, levando-nos a uma profunda autoreflexão. Essa é uma grande importância da abordagem de Reggio Emilia. Os impactos desse processo são significativos, pois nos levam a repensar nosso cotidiano na educação e a transformar gradualmente nossa escola e nossa realidade educacional, “piano piano”, ou seja, pouco a pouco.

A questão do contexto brasileiro em relação à abordagem de Reggio Emilia envolve a valorização das crianças como protagonistas ativas, a importância da escuta e a necessidade de formação continuada dos professores. Gostaria de entender como esses princípios se manifestam no contexto brasileiro, se há especificidades locais e se existem aspectos comuns a todos os lugares.

Sobre o papel da criança como protagonista ativa e a importância da escuta, é fundamental ressaltar que tais conceitos têm gerado uma significativa mudança no contexto educacional brasileiro. Muitas vezes, tendemos a subestimar as capacidades das crianças e a antecipar seus caminhos de aprendizado. Um exemplo emblemático é o livro do Kit Diálogos Embalados deste mês, “Sapato e Metro”, que envolve crianças de  5 anos descobrindo medidas e números ao medir uma mesa para um carpinteiro. Essa experiência evidencia como a abordagem de Reggio Emilia valoriza o tempo e o contexto necessários para que as crianças descubram conceitos por si mesmas, em pequenos grupos,  promovendo sua autonomia e protagonismo no processo de aprendizagem.

Nossa tendência inicial seria, por vezes,  fornecer uma fita métrica e mostrar às crianças como medir, o que não permite que elas assumam esse papel ativo e protagonista em sua aprendizagem. Assim, inspirados pela abordagem de Reggio Emilia, buscamos integrar essa perspectiva em nosso cotidiano escolar. 

A questão da escuta, tão valorizada pela abordagem de Reggio Emilia, também é um conceito essencial que temos absorvido no contexto brasileiro. Escutar significa estar verdadeiramente disponível para o outro, seja a criança, a família ou os colegas de trabalho. Essa disposição para ouvir vai além das palavras faladas, inclui gestos, olhares, expressões e movimentos… Cultivar essa escuta ativa enriquece nossa prática educacional, possibilitando uma maior compreensão das necessidades, interesses e perspectivas de todos os envolvidos no processo educativo.

No final de janeiro, completaram-se 30 anos desde o falecimento de Loris Malaguzzi, deixando um legado educacional inspirador que influenciou escolas e projetos educacionais em todo o mundo. Diante desse marco, gostaria de saber, Ana, se há algum aspecto desse legado que você gostaria de destacar, especialmente considerando os desafios e questões contemporâneas que enfrentamos atualmente.

Este ano comemora-se também os 30 anos de Reggio Children. Esta instituição, junto com a Istituzione Scuole e Nidi d’Infanzia di Reggio Emilia e a Fondazione Reggio Children, tem como objetivo preservar e promover o legado educacional fomentado pelo Prof. Loris Malaguzzi. Gostaria de ressaltar dois pontos cruciais desse legado, no meu ponto de vista. Primeiramente, a compreensão de que a educação é um esforço coletivo, uma colaboração entre diferentes atores. O professor Malaguzzi valorizava o trabalho em equipe e cultivava significativas relações e diálogos, como a com Gianni Rodari, o que evidencia a importância de uma abordagem colaborativa na educação. Em segundo lugar, destaco a necessidade constante de movimento e aprendizado na área da educação. Aprendi com os representantes de Reggio Children, àqueles que trabalharam diretamente com o Prof. Loris Malaguzzi, a importância de estudar, refletir e estar aberto a diferentes realidades e contextos. A Instituição Reggio Children desempenha um papel crucial ao reunir profissionais de diversos países para promover discussões e debates enriquecedores, sobre educação de qualidade e o próprio direito à educação para todas as  crianças.

Compreendemos a importância da participação da família e da comunidade na abordagem de Reggio Emilia. Gostaria de saber como essa participação é observada nas escolas brasileiras inspiradas por essa abordagem e de que forma ela contribui para o desenvolvimento de uma comunidade escolar mais engajada e participativa.

A participação da família na escola é um princípio fundamental da abordagem de Reggio Emilia. Desde sua origem no pós-guerra, as escolas foram construídas e geridas pela comunidade, destacando o papel crucial das famílias no processo educacional.  A presença ativa da comunidade, especialmente das famílias, é evidenciada nos conselhos  presentes em cada escola municipal de educação infantil (Consiglio Infanzia-Città). Esses conselhos desempenham um papel vital em discussões e tomadas de decisões importantes. Busca-se construir um projeto de participação que envolve não apenas a presença física dos pais na escola, mas a construção de um projeto educacional comum para crianças, famílias e escola.

Atualmente, estou trabalhando em um livro inspirado na abordagem de Reggio Emilia, que relata minha pesquisa de doutorado sobre a participação. Esse livro será editado pela Editora Diálogos Embalados, e destaca como a participação, de acordo com a abordagem de Reggio Emilia, vai além da simples presença dos pais na escola, envolvendo a construção conjunta de um projeto educacional voltado para o bem-estar das crianças.

Para concluir, gostaria que você abordasse os desafios práticos enfrentados pelos educadores que adotam a abordagem de Reggio Emilia em seu dia a dia, e como esses desafios são superados na prática.

O maior desafio, em minha perspectiva, é a tentativa de replicar “o modelo” de Reggio Emilia no contexto brasileiro. Muitas vezes, caímos na armadilha de pensar que precisamos dos mesmos materiais ou estruturas físicas encontrados lá. Por exemplo, pode ser que a nossa sala seja pequena demais para se parecer com as salas de Reggio Emilia, o que nos leva a pensar que não conseguiremos nos inspirar nessa abordagem.

Ademais, é importante considerar que alguns mitos sobre Reggio Emilia podem dificultar a sua inspiração no Brasil. Por exemplo, a ideia de que as salas em Reggio Emilia têm poucas crianças é um equívoco. Também é comum acreditar que as pesquisas educacionais nessa abordagem são longas e demoradas, mas exemplos como o do “Sapato e Metro” demonstram que podem ser realizadas em um curto período, como dez dias, na referência do livro.

Eu acredito que Reggio Emilia pode nos provocar, nos convidar e contribuir significativamente para repensar o princípio de uma educação que respeita não apenas as crianças, mas também os professores, funcionários e famílias. É um projeto de vida, uma abordagem educacional que precisa ser compartilhada e abraçada pela comunidade envolvida.