A casa em tempo de recolhimento

É uma palavra, um conceito único e particular para cada um de nós, mas também universal. Que bonita essa palavra – “casa” – que convida à observação, ao tempo estendido e desacelerado. Que convida a olhar mais devagar para observar melhor. 

Não por acaso, o tempo e o espaço foram potencializados pelo distanciamento social. Recebemos um convite do destino de poder parar e compreender o que há de simbólico e metafórico nos cantos e sentimentos da casa que revelam de maneira diferente as sutilezas e as subjetividades.

Nos exercícios do ateliê de fotografia você pode ter pistas e vivenciar o encontro da casa com seu espaço íntimo, encontrar elos afetivos entre pessoa e lugar. São exercícios poéticos a serem vivenciados como experiência pessoal, a partir da materialização que a linguagem fotográfica experimenta.

Através da fotografia – expressão visual a base de cortes sobre o tempo cronológico – podemos parar, esperar, fotografar e enxergar mais fundo e mais longe. De efêmero, de cotidiano, de fugaz, na captura de imagens, haverá um prazer a ser revelado, haverá uma sensação de beleza sutil e intensa.

No momento em que adultos e crianças estão em casa, nada mais apropriado do que fazer uso da nossa “câmera interna” para explorar espaços, tempos e objetos cotidianos. Haverá uma diversidade de possibilidades para as explorações fotográficas no âmbito doméstico. 

A casa como ateliê

A casa é um grande ateliê. As possibilidades são infinitas: da textura das colchas às janela aberta para fora, dos cantos dos cômodos às frestas das portas, dos móveis aos pequenos objetos de decoração, da plasticidade dos tomates e das bananas aos reflexos do espelho, das luzes às sombras do inverno.

A obra original, geradora de toda essa conversa, é A poética do espaço de Gaston Bachelard. No recorte de dez páginas o autor sintetiza o que podemos extrair da inspiração fotográfica para reservar um tempo para observação e registro. O visor da câmera se abre à curiosidade como uma lupa (ou seria como uma luneta?) ao fazer contato com a diversidade de temas. Como ele diz, a casa “é um verdadeiro cosmos”:

Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz freqüentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo […].

Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que freqüentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida da pessoa, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o ser humano seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “atirado ao mundo”, como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. (BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp.200-201).

O ateliê resgata a atenção sobre a casa e nos leva de volta à “casa da infância”. Como estamos agora mais tempo nela, vamos chegar mais perto para observar e fotografar. É um reencontro com certas memórias.

A casa como lugar de curiosidades

A casa como lugar de curiosidades. Quando criança, como você enxergava os cantos da casa? Como os espaços eram vividos e significados? Montava cabana num canto, encontrava um bom esconderijo atrás da cortina ou dirigia o sofá como um carro veloz? Desse modo, ao fazer exercícios de reflexão sobre passado e presente você pode entender melhor a criança que se encanta, percebe e elabora o mundo. E agora, quando adulta, como lida com o imaginário, os deslumbramentos e as invenções?

A fotografia têm como princípio perceber a criança como sujeito de suas curiosidades e o lugar das curiosidades na aprendizagem, por isso antes de tudo devemos nos colocar nesse lugar. Para enxergar a criança é preciso enxergar a sua criança que te acompanha – “ver como o outro vê” -, seja como professora, seja como contadora de histórias. As narrativas fotográficas vão em busca da materialização da memória em forma de imagens, trazem uma combinação de história, poesia e devaneio. Não é o real, é a curiosidade a serviço da releitura do real.