Em dezembro de 2014, eu fui convidada a liderar um projeto de inovação na escola em que trabalho – o Colégio Magno/Mágico de Oz. 

Estou lá há mais de 20 anos. Já fui professora da Educação Infantil, do Ensino Fundamental, dei aula de artes, informática, robótica, atuei na formação de professores e na coordenação de etapa. Hoje, ocupo a posição de Head de inovação do Magno. Ou seja, sou a pessoa cuja missão é estabelecer a interlocução da escola com startups, de promover o desenvolvimento de pessoas e projetos, de perseguir o mais importante em processos de transformação: a construção de uma cultura digital. 

Se já é bastante inovadora a ideia de trazer do mundo corporativo uma função profissional, cujo o propósito é fazer acontecer, é ainda mais disruptivo (para usar o repertório no qual hoje estou mergulhada) chamar para esse desafio uma educadora do “chão” da escola, que preza acima de tudo a defesa de princípios pedagógicos – mas, também, uma profissional que não via outra saída para a educação, senão olhar para a frente. Eu agradeço essa escolha, cuja coragem pode ser medida pela inexistência ou pela fragilidade dessa posição na maior parte das instituições de ensino… 

Uma das melhores lembranças que trago da infância é a de, com meu pai e meus 4 irmãos, todos de idades próximas, trabalharmos em projetos, que duravam dias intermináveis nas nossas férias. Um desses projetos foi o de ressuscitar as 7 bicicletas velhas, entulhadas na garagem de casa. 

Foram muitos dias entre desmontar, limpar, consertar e repaginar as magrelas, mas ao final de uma semana, tínhamos bicicletas novas, lindas, com cores vibrantes e únicas; ninguém tinha uma bicicleta rosachoc naquela época. 

Eu poderia lembrar dessa história contando simplesmente que meu pai, por não ter dinheiro para comprar outras bicicletas, arrumou as velhas. 

Mas, eu não me esqueço da sensação de poder, do prazer genuíno que eu senti ao perceber que fomos capazes de fazer bicicletas novas surgirem de sucatas enferrujadas, que o que tínhamos era único, era nosso, resultado de um trabalho coletivo. Um trabalho, diga-se, cheio de propósito e muito bem planejado, na mesa do café da manhã de um dia chuvoso que prometia se estender por outros mais, o que nos impediria de ir à praia e nos levaria, 5 crianças com energia represada, a derrubar a casa. Meus pais foram incríveis! 

As minhas lembranças da escola também são muito vívidas. Eu literalmente cresci em uma escola. A casa da minha avó, a empreendedora, ficava nos fundos e tinha uma passagem secreta, que só os netos conheciam. 

Para mim, a escola sempre foi um lugar especial, um espaço de encontro. 

Aos finais de semana, a gente tinha uma escola todinha para nós. E, adivinhem do que a gente brincava no parquinho? De ser professor! E levava tão a sério essa brincadeira que muitos de nós primos, um dia adultos, nos tornaríamos professores. 

Mas, por ter vivido uma vida inteira dentro da escola, talvez eu devesse levar mais a sério essa história de ministrar aulas comportadas, de saber controlar uma turma e não ouvir sequer uma mosca voar na sala… 

Mas, na verdade, nunca fui mesmo um perfil clássico de aluna, tampouco me conformei a um perfil clássico de professora. A melhor lembrança que eu trago do tempo de aluna é a do meu professor de Geografia da 5a série. 

Vejam se não é para lembrar com saudade dele: logo na primeira aula, ele montava times, com os quais trabalhávamos ao longo do ano. Toda aula, eram tempos de balbúrdia feliz, com mesas arrastadas até se encaixarem às outras. 

Esse bom e inovador professor não fornecia respostas. Só fazia perguntas. 

Cabia a nós buscar explicações para as questões mais malucas. Onde? Dar um google, naquela época, era mergulhar nas enciclopédias. Nos dias de aula de Geografia, o pessoal da 5a série chegava com a mala cheia, carregada de livros e de possíveis respostas para as perguntas surpresas do professor. Ele se chamava Uivão. Quanto mais difíceis de serem encontradas, mais pontos as respostas valiam. E assim, as aulas eram gamificadas e divertidas e, quando o sinal batia, as perguntas sem respostas lembravam que o jogo ainda não havia terminado. 

No final do jogo, ou melhor, ao final do ano, vinha o grande prêmio: uma volta no fusquinha do professor, que ele chamava de cápsula do tempo. 

O professor Uivão era o estereótipo de um professor à moda antiga: sempre de jaleco, cheio de manias, com um vocabulário peculiar e um acento ao falar, como só os bem mais velhos faziam ao pronunciar palavras terminadas em (L), com um acento bem marcado e a língua quase dando cambalhota para trás dentro da boca. 

Isso sempre me faz pensar que o futuro da escola, que se pretende inovadora, independe de recursos tecnológicos sofisticados, mas não pode prescindir da construção de um currículo e de estratégias de aprendizagem que possibilitem aos alunos experimentar diferentes formas de aprender, como protagonistas do seu próprio desenvolvimento intelectual e da construção de conhecimento científico. 

(Podemos fazer aqui uma rápida viagem no tempo e estabelecer um paralelo com o que hoje se chama de código. Pense: podemos transformar a programação em uma cartilha para decorar uma nova língua, e assim seremos tradicionais como sempre e como nunca. Ou podemos pensar que nossas crianças e jovens precisam aprender a se expressar em uma nova linguagem, com sua própria lógica, seus procedimentos e suas situações de uso. Estamos falando de papagaios digitais ou de pessoas capazes de desenvolver um pensamento computacional?). 

Todo pensamento dual, entre tradicional e novo, certo e errado, produz injustiças. Não é verdade afirmar que a escola parou no tempo. Ela continua tentando mudar, desde sempre. A diferença é como tratamos aqueles que buscam caminhos diferentes. 

Tenho um colega professor, Marcos Ono, que diz quem quer ver o futuro precisa ir para a escola. O aluno presenteia seus professores todos os dias com o futuro. Pelos olhos, pela fala, pelas suas narrativas, o professor deve entender o que é o mundo que virá. 

É um equívoco brutal para a educação usar recursos tecnológicos como estratégia de aproximação do futuro e engajamento do aluno. Admitir que máquinas podem assumir o papel dos professores é presumir que sua missão seja apenas entregar conteúdo, pronto, embalado, com endereço conhecido e remetente, carimbo e selo postal. Se possível, por sedex.s 

Ser professor é bem mais que isso. E entregar conteúdo hoje, depois de 3 meses distanciamento social, não requer presença, tampouco sala de aula. 

Não é o equipamento ou falta dele que vai impedir que o futuro chegue. O futuro chegava na escola da minha avó de fusca todos os dias. 

As escolas fazem espaços supermodernos, mas continuam planejando aulas, hipotetizando problemas de resposta única e previamente conhecida, simulando uma vida real que nem é tão real assim. 

É o exemplo de salas colaborativas, onde os meninos trabalham juntos, em mesas coletivas, mas depois fazem provas à moda antiga, em carteiras bem distantes uma das outras. E ainda se pergunta o que fez ou falou aquele personagem do livro, com nome e sobrenome. 

A tecnologia, nesses casos, inclusive, pode e vem sendo usada para garantir que tudo permaneça como está, com sistemas de detecção de cola, câmeras nas salas; comando e controle. 

Em nosso projeto pedagógico, conciliamos a inovação e a tradição naquilo que importa e preparamos os alunos não apenas com os olhos no passado ou no presente, mas para um futuro imprevisível, marcado pelo conhecimento, pela tecnologia e pela transição de valores. Não há educação sem autonomia e sem valores. Por isso, a emancipação do pensamento crítico, autônomo, ético e responsável são princípios cotidianos perseguidos no Magno, com todos os seus percalços e todas as contradições – mas que estão na ordem do dia, e são discutidos às claras. 

O conhecimento deve alimentar e ser alimentado pela ação criativa. O fazer é uma dimensão educativa central. 

Entre os grandes desafios do mundo do século XXI está a formação de cidadãos criativos. Sem criatividade, parece impossível a coletivos, empresas, países e suas sociedades darem conta dos problemas complexos que já fazem parte de nosso cotidiano. 

Mas, paradoxalmente, a criatividade não virá das universidades ou do Ensino Médio das escolas formais de Ensino Fundamental e do Ensino Médio. As principais lições do pensamento criativo vêm da risonha Educação Infantil, vêm da forma como as crianças aprendem e se relacionam com o mundo que as rodeia, daquilo que as intriga e motiva sua aprendizagem. Vêm da forma sucessiva e infinita aprendizagem em espiral para levantar, desconstruir e reconstruir, de novo e de novo, as hipóteses sobre os fenômenos da natureza, sobre as relações humanas, sobre os acontecimentos cotidianos, até que se tornem conhecimento científico. 

“Acredito que a escola (na verdade, toda a vida) deveria se tornar mais como o jardim de infância”, ensina o pensador Mitchel Resnick, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Vem da obra de Resnick a proposta da Aprendizagem Criativa, abordagem pedagógica que busca uma experiência mais criativa, mão na massa, relevante e lúdica. 

Resnick se inspira em grandes estudiosos da infância, como Froebel, Maria  Montessori, John Dewey, Loris Malaguzzi, entre outros, para afirmar que é a maneira como a criança aprende a mais significativa e, portanto, deve ser estendida para que sigamos aprendendo ao longo da vida com a  mesma paixão e entusiasmo. 

Resnick é mundialmente conhecido por ter criado o scratch – que é mais do que uma linguagem de programação intuitiva para crianças. O scratch é uma nova linguagem de expressão para as crianças – talvez a 101a das linguagens de Loris Malaguzzi, outro jornalista que veio perturbar o sono dos educadores com suas provocações. 

Pois só assim novas linguagens são assimiladas: quando elas se incorporam à vida real, de pessoas que terão de aprender por toda a vida. 

Toda a vida mesmo. Quando você ouvir falar em life-long learning, lembre-se de que estão falando de você, nem só de seus alunos, nem de seus filhos

Diz um provérbio japonês que ensinar é o caminho para aprender. Apoiar, orientar e interagir com os alunos em seu processo de construção do conhecimento significa ao professor reconstruir e reinventar sua própria maneira de aprender. A aprendizagem para toda a vida, para ser significativa, precisa de uma boa dose de autoria. 

Fizemos algo assim no Magno: invertermos a lógica. Tiramos o professor do papel de ensinante e o colocamos no papel de aprendente. 

Hoje, somos uma escola que aprende e que busca para todos uma  aprendizagem que se constrói no cotidiano; todos os agentes são educadores e têm algo a ensinar e muito a aprender. 

Temos alunos tutores que ensinam professores sobre o melhor uso de  ferramentas tecnológicas; temos muitos colaboradores administrativos que formaram grupos de trabalho com alunos interessados em aprender mais sobre aquilo em que esses funcionários são especialistas. É o caso do Zé, nosso jardineiro. Além de zelar amorosamente pelas bromélias que enfeitam a entrada da escola e das plantas meticulosamente podadas, agora o doce Zé zela pela horta da escola trabalhando diretamente com um grupo de alunos do Ensino Médio. Sem o que Zé sabia, eles não poderia construir o seu projeto de irrigação automatizada. 

Todos temos uma história, contextos, momentos, medos, ideias preconcebidas. Precisamos avançar muito sobre nossas práticas de formação. É ilusão achar que basta o empurrão inicial. É preciso estimular constantemente as equipes para que a chama não se apague. A inércia da educação é um dado real, e muito forte. 

Parte fundamental do meu trabalho é fazer com que a transformação não pare, é mobilizar as pessoas, do diretor ao bedel, muitas vezes comprando brigas, furando bloqueios e inovando também na forma de descosturar o currículo, 

Transformar a escola é empoderar alunos e professores, mas de verdade. 

Confiar neles, criar condições para que trabalhem juntos, desafiá-los e aceitar ser desafiado, em relações horizontalizadas e de colaboração. 

É preciso também lembrar que os inovadores, aqueles que estão na ponta do processo fazendo a escola mudar, não vão longe se o combustível for apenas o ímpeto. Também aqui valem os quatro pilares da UNESCO: saber aprender, saber fazer, saber conviver, saber ser. 

Inovadores são pessoas inteiras: com cabeça, coração, mãos. É preciso aliar conhecimento e estratégia, vontade e coragem, e uma grande capacidade de compreender que todos somos capazes de ir mais longe. E mudar. É isso o que eu faço. Assim são todos os meus dias.