“Crianças… já pra dentro!!!”

Parece que ainda ouço a voz imperativa de Dona Lourdes, minha mãe, bradando ao quarteirão onde morávamos. Naquele tempo nossos brinquedos e nossas brincadeiras perdiam suas cores pela exposição ao sol, enquanto nós, as crianças, corávamos.

Se você pensa que vamos tratar de saudosismo, se enganou. Em que pese ser óbvio que todos sentimos saudades de nosso tempo de infância, este artigo deseja apenas trazer uma reflexão sobre o brincar e as nuances (nada sutis) que diferenciam o brincar fora e o brincar dentro. 

Um ingrediente chamado “segurança”

Este é realmente um tema bastante delicado. O crescimento desenfreado de nossas cidades e o aumento da densidade populacional com a construção de prédios residenciais cada vez mais próximos uns dos outros, possivelmente foram os responsáveis pela mudança desta chave binária: “dentro – fora”. 

Também não pretendemos discorrer sobre as questões da segurança urbana. Mas questionar quais são nossos medos e especialmente quais são nossas percepções pessoais sobre segurança e o quanto estão ligadas à nossa própria insegurança.

O que existe em nossos quintais ou nos parques ou ruas de nossos condomínios que possam levar nossas crianças a se aproximarem dos perigos a ponto que ultrapassem a linha do razoável? O quanto temos atualmente a necessidade de reduzir os riscos ao nível “zero” e será isto algo possível? 

Quem sabe a nossa busca incessante por segurança esteja contaminando nossas crianças com o vírus da insegurança quando os impedimos de levantar de seus próprios tombos, de criar suas próprias brincadeiras em conjunto, de consertar seus brinquedos quebrados com suas próprias mãos, de ajudar um amigo a levantar, de conhecer o limite da velocidade de suas próprias pernas e de crescer em corpo e mente.

O que podemos fazer?

A tecnologia e o corpo

Não podemos, da mesma forma, somente criticar a tecnologia e os avanços que elas proporcionam à nossa vida em muitas de suas áreas. Novas e inéditas formas de interação entre as pessoas com as redes sociais, diagnósticos cada vez mais precisos para nossas enfermidades, maior capilarização das informações, tudo absolutamente desejável. 

Mas especialmente para a infância, momento em que nos conhecemos e reconhecemos nossos corpos, nossas habilidades, nossos sentidos, quando construímos nossas relações interpessoais e formamos nossa humanidade, onde estará a contribuição dos “videogames”, dos celulares e da vida cibernética? 

Como devemos administrar dedos e reflexos rápidos em corpos cada vez mais inertes? E aprofundar relações cujo contato mais próximo é a troca de mensagens escritas com palavras reduzidas ou resumidas a um “emoji”? 

Sequer possibilitamos alterações da temperatura destes corpos hermeticamente guardados em nossas casas. Não se coram de sol nem descoram na água da chuva. As aventuras dos enclausurados se resumem aos 22 graus temperados por nossos aparelhos condicionadores de ar.

O que podemos oferecer?

Enfim, hora de ir para a escola!

Ah… a escola! Crianças reunidas, espaços preparados, equipes de apoio, professores, coordenadores, diretores e gestores a postos para receber estes meninos e meninas vindos da segurança de seus lares para finalmente ampliarem seus repertórios de aprendizagem.

Mas será mesmo que nossas escolas estão prontas? E não me refiro ao material humano, nem aos espaços e instalações, mas se estão prontas para receber estas crianças que em nada se assemelham às crianças de vinte ou trinta anos atrás para ofertar a eles estas possibilidades nascidas destes novos tempos onde o mais próximo do chão é o tapete? Ou apenas trocamos nossas lousas por “tablets” e nossas reuniões por “meetings”?

O que mais podemos transformar?

“Crianças, já pra fora…!!!”

Quem sabe não seja tempo de resgatar nossa ancestralidade no brincar. Colorir o sol com o rosado das bochechas, expandir o horizonte dos olhos para além de nossas alvenarias, aumentar o percurso das corridas para o tamanho dos quintais, não dos corredores.

Apresentar a eles o vento que não nasce dos ventiladores, as feições dos rostos reais dos amigos no lugar das figurinhas, brincar de roda dando a mão a uma outra mão. Uma dessas mãos verdadeiras, com cor, textura e temperatura. Deixar que tropecem em pedras e raízes, não apenas em obstáculos digitais. 

Do lado de fora existe vida, onde eles podem comemorar um gol aos abraços, onde podem pentear ou despentear os cabelos uns dos outros, podem ver o brilho no olhar do outro, vindo da fascinação de uma descoberta ou do choro de dor.

Quem sabe as infâncias estejam pedindo socorro com seus gritos silenciosos e abafados pela imersão cada vez maior em seus “para dentro”. Para dentro de casa, para dentro do quarto, para dentro de si mesmas.

Carros de rolimã, barcos de papel, saquinhos de “cinco Marias”, cordas de pular, amarelinhas. Mangueiras d’água, bicicletas, enxurradas, barrancos. Cabelos e cata-ventos a sentir o deslocamento do ar. Sujeira sob as unhas e nos sulcos dos pescoços.

Vamos permitir que brinquem sem brinquedos, que inventem jogos, que desejem mais, não só do mesmo. Não é tarde, nunca é. Vamos juntos com elas para o quintal de nossas casas ou escolas para reatar com nossa infância para, participando, sermos um “amiguinho” a mais, para não sermos, ausentes, um adulto a menos.

Vamos gente… Já pra fora!!!